- antropoLÓGICAS
v8a6| Mercado imobiliário, neoliberalismo e Covid-19: a crise vista pelos olhos da “oportunidade”
Por João Paulo Macedo e Castro é professor do Departamento de Ciências Sociais da UniRio.
Roberta Sampaio Guimarães é professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ.

Conical Intersect 2, Matta-Clark,Gordon (1977)
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Após a crise financeira de 2008, muitos pesquisadores acreditaram que haveria uma superação do neoliberalismo por uma forma de governo mais justa. Outros, menos otimistas, apostaram que a sociedade neoliberal não se arrefeceria, argumentando que ela estaria fundada em uma racionalidade de mundo capaz de se adaptar a cenários adversos. Inclusive se fortalecendo.
No atual cenário brasileiro, parece prudente mantermos uma observação distanciada dos eventos. De notícias de solidariedade entre grupos marginalizados a desejos de um futuro igualitário, há também agentes que mantiveram padrões de lucro em meio ao caos sanitário. Eles mobilizam justificativas, condutas e procedimentos que, creem, preservarão vidas sem alterar modelos econômicos e sociais.
Por meio de omissões ou até de incentivos institucionais e jurídicos, seus empreendimentos pairam sobre as ações de controle da pandemia, assujeitando outros a uma perigosa produtividade. Encarnam à perfeição o que Christian Laval e Pierre Dardot1 diagnosticaram como a lógica concorrencial do neoliberalismo: uma forma de subjetividade “empresarial” que visa intensificar as competências e eficácias em diversos domínios de ação - independente do contexto.
As disputas em torno da classificação das atividades da construção civil como “essenciais” ajudam a pensar os contornos que essa lógica concorrencial ganha no país2. Confrontados com a retração dos negócios pelas medidas de contenção do Covid-19, incorporadores, construtores, empreiteiros, investidores e operadores imobiliários mobilizaram novas estratégias para tornar a crise sanitária uma janela de oportunidades3.
As inquietações econômicas que assolaram governos, empresários e trabalhadores do setor não eram desprovidas de sentido, já que a indústria da construção responde por cerca de 4% do Produto Interno Bruto (PIB)4. De seus rendimentos vivem cerca de 2 milhões de trabalhadores formais, mas se considerarmos no cálculo os informais e autônomos esse total sobe para cerca 6,5 milhões5.
No início da política de isolamento social, um acordo do setor com os governos locais determinou que suas atividades eram essenciais, permitindo o funcionamento de canteiros de obras. Ficou então sob responsabilidade de cada empresa a implementação de protocolos de segurança do trabalho6. Unindo razões econômicas e sanitárias, os empresários alegaram que a liberação garantiria o pagamento do salário integral dos trabalhadores e que medidas como a medição de temperatura, o uso de máscaras e a distribuição de álcool gel controlariam a propagação do vírus. Isso não impediu, claro, que aparecessem denúncias de aglomerações nas obras, de falta de equipamentos de proteção e de casos de operários infectados7.
Contudo, antes do Covid-19, a construção civil já era um trabalho de grande risco de intoxicação pulmonar e de acidentes fatais. Qual seria então a excepcionalidade dessa pandemia para aqueles que já possuíam seus corpos marcados por comorbidades e que não costumavam contar com assistência médica adequada? Com a doença e o sofrimento dos segmentos populares fazendo parte da normalidade neoliberal, os apelos à suspensão das atividades econômicas foram acusados de extremistas por diversos setores da sociedade.
Na ampla esfera de atuação da indústria de construção civil, o mercado imobiliário foi um dos que buscou se reinventar frente à redução de clientes e potencializar ganhos. O impacto da pandemia nesse segmento foi um fenômeno global, levando países como Portugal e China a uma queda de 34,7% de vendas de imóveis8. No Brasil, os moradores das cidades se confinaram, mas “onde” e “como” permaneceu um processo marcado por grandes desigualdades. Inclusive nas dinâmicas de compra e venda.
Modelos que fixam a população pobre em condomínios situados em áreas periféricas, distantes de serviços de transporte, saúde e educação, se fortaleceram com a prerrogativa de que lá teriam condições de higiene mais apropriadas para o isolamento familiar. Nos programas de governo, o lugar comum da pobreza insalubre retornou com a generalização do léxico sanitarista, justificando políticas habitacionais e de financiamento via bancos públicos que tanto auxiliaram construtoras quanto incentivaram o endividamento de compradores9.
Daí decorreu que o mercado residencial voltado para a moradia popular foi o que menos se retraiu no contexto do coronavírus. Lançando mão de recursos como a visitação virtual de apartamentos e a promoção de saldões online que ofereciam até 20% de desconto nos valores dos imóveis, as construtoras conseguiram superar o baque inicial nas vendas10. Se pensarmos nas dinâmicas urbanas brasileiras, o neoliberalismo em sua versão pandêmica tendeu assim a aprofundar o que Eric Charmes11 chamou de “efeito clube”. A ameaça do vírus diminuiu a mobilidade e as interações entre perfis socioculturais diversos. Bolhas de convivência foram acentuadas numa modalidade contemporânea de apartheid virtual.
Como parte significativa da renda familiar costuma ser empenhada na compra de um imóvel, o desafio do mercado imobiliário passou a ser o convencimento de compradores da segurança econômica do negócio. A confiança do olho no olho estabelecida no estande de vendas foi então substituída pelo contato via plataformas online. No cotidiano das corretoras de imóveis, a revolução digital foi rapidamente absorvida, incluindo empresários, gerentes e operadores de grandes, médias e pequenas agências.
A figura empreendedora do “líder de equipe” se fortaleceu com os treinamentos remotos, motivando subordinados a buscarem maior eficácia e competitividade. Lives passaram a ensinar métodos e expedientes de incorporação de terrenos, de diálogo com canais governamentais, de assertividade junto a compradores indecisos, entre outras formas que conduzissem a uma retomada dos lucros. A máxima articulada era que, frente à alteração das ferramentas de trabalho, quem conseguisse reinventar técnicas e abordagens levaria vantagem.
A lógica concorrencial se atualizou. Empresas renovaram estratégias de produção e acumulação. Operadores imobiliários defenderam a conservação de seus rendimentos. Ações governamentais incentivaram as famílias: “endividem-se, esse é o momento de conquistar a casa própria”. Sem esquecer do frisson que ocorreu nos fundos de investimento imobiliário. A realização do sonho darwinista de sobrevivência do mais adaptado. Se alguns vão morrer, outros vão ganhar. Aproveite a brecha. “E daí?”, diz o presidente Bolsonaro12. A sociedade neoliberal a todos seduz e engloba. Notas:
1 LAVAL, Christian; DARDOT, Pierre. 2016. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo.
2 Em 07 de maio, o presidente Bolsonaro decretou as atividades do setor como essenciais. https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-amplia-servicos-essenciais-inclui-construcao-civil-atividades-industriais-24415417?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newscorona
5 Dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados de 2019 e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, realizada em 2018. https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/a-ficha-ainda-nao-caiu-construcao-civil-mantem-canteiros-de-obras-ativos-em-todo-o-brasil/
6 Até meados de abril, a maioria dos governos estaduais havia decretado pela permanência das atividades da construção civil, com exceção de Ceará e Goiás. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/04/13/construcao-mantem-obras-pelo-pais-e-poe-em-xeque-seguranca-do-trabalhador.htm?cmpid=copiaecola&fbclid=IwAR146PItfyWLnCXkFrHdwepGTQj44ZVn_qq5RSfbKSzKiPqJhwFQPuyd3cE .
11 CHARMES, Eric. 2019. La revanche des villages. Essai sur la France périurbaine. Paris: Éditions du Seuil et La République des Idées.
Texto originalmente publicado em 17 de junho de 2020 na série de boletins da ANPOCS sobre coronavírus e Ciências Sociais. Disponível aqui.
Agradecemos a ANPOCS pela parceria.